Da infância pobre no seringal ao senado, Marina Silva 51 anos, sempre insistiu em reinventar seu próprio destino - sem perder a ternura, jamais. Agora, quer reiventar o país
Logo na recepção do gabinete de Marina Silva no Senado Federal tem uma planta. De plástico. Não exatamente o que se imagina encontrar por ali. A senadora, afinal, é a mais importante ambientalista do país, uma das mais respeitadas do mundo. Mas, se tudo fosse como se espera, ela nem estaria lá.
Provavelmente continuaria no seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, no Acre, onde nasceu e cresceu. Isso, claro, se aguentasse a vida na floresta. Três de seus 11 irmãos não conseguiram. Sua avó, seu tio e seu primo também não. Cinco deles, mortos no intervalo de uns poucos meses, no início dos anos 70, quando a abertura da rodovia BR-364 rasgou a selva e provocou um surto de malária e sarampo.
Marina atravessou cinco malárias, três hepatites e uma leishmaniose, que deixou um rastro de contaminação por metais pesados, uma dieta restrita que segue até hoje e um certo ar de fragilidade – que se dissipa quando ela começa a falar. Desenganada algumas vezes, chegou a ouvir de um médico: “Já está com a alma no inferno”. Insistiu em contrariar, e sobreviveu. Sem lamentação, pelo contrário. “Ficava difícil reclamar da vida se a vida de quem estava ao lado era parecida com a sua”, lembra, com uma suavidade inesperada diante da trajetória dura.
Recurso renovável
Seguiu na contramão das expectativas. Aos 16 anos, entrou no programa de alfabetização do governo, o Mobral. Queria ser freira, e freira, dizia a avó, precisa ler e escrever. Em vez do convento, foi parar nos supletivos e avançou pela Universidade Federal do Acre – mais tarde, ainda encarou uma especialização em psicopedagogia. Bom demais para quem, para se sustentar na cidade, trabalhava como empregada doméstica, não?
Não. Na faculdade de história, Marina descobriu a política. Em 1984, plantou com o ambientalista Chico Mendes a CUT no Acre. No ano seguinte, assinou a ficha de inscrição do Partido dos Trabalhadores e a política descobriu Marina. Foi eleita vereadora, deputada e senadora, até ser convidada por Lula para ser ministra do Meio Ambiente, em 2003.
Ficou até 2008 no cargo. Há três meses, trocou o PT pelo Partido Verde, após 25 anos de militância. “Saí pelas mesmas razões pelas quais fiquei tanto tempo lá: para lutar pela minha causa, pela causa que tem que ser de todos os brasileiros, de todo o planeta”, explica. “O desenvolvimento sustentável.”
Sim, Marina é um recurso renovável. Parece mudar para continuar fiel a si mesma. Ou mesmo à própria fé. No fim dos anos 90, o que ela descreve como um “toque do espírito” a fez deixar o catolicismo pela religião evangélica. “Se você tem uma visão das coisas como se elas estivessem cristalizadas, fica difícil mesmo [mudar]”, argumenta. “Isso não tem nada a ver com uma posição frágil.”
Pelo contrário, sua posição está forte como nunca. Uma rede de apoio começa a se formar em torno de Marina. Sua pré-candidatura à presidência da república levou ao PV figuras importantes do empresariado paulista, como Roberto Klabin, Ricardo Young e Guilherme Leal – este, um dos controladores da Natura, cotado para ser o vice da chapa.
Ano que vem, a campanha vai exigir seu tempo, e ela deve ficar menos com o marido e os quatro filhos – dois do atual casamento, dois do primeiro. Como nas últimas quatro eleições, as pesquisas indicam que a coisa deve se resolver entre PT e PSDB. Mas Marina, você sabe, insiste em desafiar o que parece definido. A seguir os principais trechos da entrevista da senadora Marina à revista TPM.
TPM. O Brasil está pronto para eleger uma mulher presidente?
Marina Silva. Se já elegeu um sociólogo e um metalúrgico, está pronto pra eleger uma mulher.
O país não é muito machista para isso?
Mas é também muito ousado. A sociedade brasileira é capaz de se colocar à frente de seus próprios preconceitos.
A senhora é mulher, negra, tem uma origem pobre e é evangélica. Já sofreu preconceito por ser mulher?
Às vezes as pessoas usam isso até para se promover... [Ri] Mas não sofri, não. Pelo contrário, era uma vantagem. Ameaçavam o [líder ambientalista assassinado em 1988] Chico Mendes, e eu, que fazia as mesmas coisas e tinha as mesmas lutas, nunca fui ameaçada. É bom quando as pessoas não ficam tão preocupadas com você, deixam você trabalhar. Faça e aconteça, depois as pessoas vão perceber.
Já sofreu preconceito por ser negra?
Não. Venho de uma realidade bem diferente: minha mãe era branca, mas era apaixonada por meu pai, negro. E ela era uma matriarca. Fui descobrir o preconceito contra a mulher e contra o negro na cidade.
Por ser pobre?
Não.
Nem quando trabalhou como doméstica?
Não. As pessoas me respeitavam, me acolhiam. Nunca fui de me colocar no lugar de vítima nem de ficar confrontando as pessoas. Senti preconceito por ser excluída entre os excluídos: “Ah, a Marina é seringueira, é filha de seringueiro”. Quando fui fazer minha identidade, a mulher não queria que colocasse que nasci no seringal Bagaço. Era feio dizer que nasci lá. “Minha filha, você já tá morando aqui, diga que é da cidade...” Fiz ela botar o Bagaço.
Sofreu preconceito por ser evangélica?
Isso sim. As pessoas têm uma visão preconcebida... Obviamente tem base de realidade, mas preconceito é quando você generaliza uma coisa: se você é evangélico, é conservador. Algumas pessoas, até amigas, já falaram: “Achava você tão inteligente, como pode ser da Assembleia de Deus?”.
O que a senhora responde?
Sorrio para elas.
Parte desse preconceito vem da atuação controversa de muitas igrejas evangélicas, especialmente em relação ao dízimo.
O dízimo é instituído biblicamente para os que creem e professam essa fé. Tem que ser um ato espontâneo do dizimista, correto?
Mas há muita forçação...
[Interrompe] É isso que estou dizendo. A própria palavra de Deus diz que não pode haver constrangimento. Mas as igrejas são formadas por seres humanos, com falhas, como em todos os lugares.
Como lida com as próprias imperfeições?
Lido de maneira imperfeita, manejando cada uma delas...
E com seus limites, as doenças a ensinaram a lidar com eles?
Me ensinaram a valorizar muito a vida, uma linha muito tênue, muito frágil. A gente não pode se colocar num lugar de onipotência. A gente tem que se conectar com a potência da vida.
Quando ficou doente pela primeira vez?
Leishmaniose tive com uns 4 anos de idade. Malária, com uns 5. Depois dos 13 anos, peguei outras malárias. Também tive hepatites.
Não devia ser fácil se recuperar no meio da floresta, sem recursos.
Na minha casa se adoeceu muito pouco. Isso até os meus 13 anos, quando passou a BR-364. A retirada da floresta levou a um surto de malária. Junto com o sarampo, foi uma guerra biológica. Nesse período, perdi duas irmãs, perdi meu tio [faz uma pausa]... Perdi minha avó, meu primo e, seis meses depois, a minha mãe morreu de aneurisma.
Foi uma morte repentina.
Ninguém esperava. Ela ficou com uma dor de cabeça às quatro da tarde e, no outro dia, às oito da noite, morreu. Como estava tendo um surto de meningite, e uma irmã minha já havia pegado, os médicos supuseram que era meningite. Não deixaram trazer o corpo. Do hospital, ela já foi pro necrotério. Ninguém viu.
Não foi ao enterro?
Não. Vimos ela sair de casa e nunca mais.
Qual a última lembrança dela?
[Silêncio] Meu pai tava fazendo uma casa nova. Minha mãe sonhava em ter uma casa coberta de cavaco [lascas de madeira], em vez de palha de jaci ou urucuri, que dava muito rato e barata. Ela já tava com um pouco de dor de cabeça. Amarrou um pano com rodelas de mandioca em torno da cabeça, e tava entregando os cavacos pro meu pai, que tava em cima da casa, empilhando os cavacos. De repente, ela falou: “Agora tá ficando tudo escuro”. Ele desceu rapidinho e já levou ela pro quarto. Ela começou a gritar com muita dor de cabeça. Meu pai pediu pro meu primo ir pra beira da estrada. Ele ficou lá um tempão, até que passou um caminhão. A sorte é que tava no verão, no inverno demorava às vezes quatro dias pra chegar a Rio Branco. Meu primo foi atrás desse caminhão, voltou num táxi e levou minha mãe, meu pai e minha irmã mais velha. Aí, nunca mais a vimos.
Isso a obrigou a amadurecer mais rápido, a assumir a casa?
Tinha minha irmã mais velha, mas ela casou um ano depois. Eu era uma dona de casa simbólica. Fiquei doente, não conseguia mais trabalhar, nem conseguia fazer comida.
Chegou a ser desenganada pelos médicos?
Algumas vezes, mas nunca acreditei. A primeira vez, aos 16 anos: cheguei doente na cidade, muito frágil, muito amarela. Estava com hepatite, mas acharam que era malária. Foi uma coisa devastadora. O médico me olhou e disse: “Essa aí já tá com a alma no inferno há muito tempo”. Nunca me esqueço do único remédio que ele passou pra mim: um vidro de Eparema. Peguei hepatite de novo, em 79. Novamente ouvi o médico dizer que dessa vez seria muito difícil, que podia ser uma cirrose, que não tinha jeito... Na gravidez da minha mais nova, que hoje tem 17 anos, estava muito doente...
“A sociedade brasileira é capaz de se colocar à frente de seus próprios preconceitos”
Como foram seus partos?
Dois naturais, um a fórceps e uma cesariana. A fórceps foi muito difícil, mas não aconteceu nada com a minha filha. Na cesárea é que eu estava muito doente. Corria risco de morte, fui até meu limite. Quando completou oito meses, meu obstetra falou: “A criança está ótima, vamos tirar agora”. Ela nasceu com 3,2 quilos e eu pesava 47 quilos [Marina mede 1,65 metro].
Onde foi seu primeiro parto?
Numa maternidade mesmo, como indigente. Era como chamavam quem não tinha INPS, quem não tinha nada. Como era indigente, não podia ter visita. Na época, eu fazia parte de um grupo de teatro. Meus amigos foram me ver. Sabe como é artista, né? O primeiro que veio falou que era meu marido. Tudo bem, entrou. Daí chega outro e também diz que é o marido. Entrou. Quando foi seis da tarde, o meu marido chegou. Ele trabalhava fora, e não existia celular para avisar... Aí a enfermeira não aguentou e me descascou: “Minha filha, que tanto marido é esse?!” [risos].
A senhora já fez aborto?
Não, não.
O que acha da legislação?
Existe uma legislação consolidada, que permite o aborto em alguns casos, como estupro, risco para mãe e algumas questões envolvendo o feto. Do ponto de vista pessoal, me coloco em uma posição contrária ao aborto.
Não deveria ser legal a mulher decidir abortar ou não?
Isso tem uma complexidade muito grande. Envolve aspectos culturais, filosóficos e espirituais. Numa questão como essa o adequado talvez seja fazer um plebiscito. Não será o presidente que irá, por decreto ou por qualquer atitude, resolver uma coisa dessas.
A senhora tem um sinal no nariz.
É da leishmaniose. É uma úlcera de pele. Apareceu em menos de dois dias, muito rápido. Conheci pessoas que ficaram extremamente deformadas, e até pessoas que foram a óbito. Na época, para curar precisava de um remédio muito tóxico, à base de antimônio. Até a casa aviadora, de onde vinham as coisas que a gente não era capaz de produzir, como remédios, sal e munição, dava 11 horas de viagem a pé. Quando peguei a doença, meu pai andou 11 horas até lá e voltou caminhando outras 11 horas, com o remédio. Quando chegou, estava tão cansado que, nunca me esqueço, deitou no chão de casa com os braços para trás, todo sujo de lama do varadouro. Tomei 45 injeções para sarar isso aqui.
Alguma sequela?
Apareceu uma contaminação de mercúrio. Os médicos acham que o antimônio da vacina apareceu na forma de mercúrio. Me criou problemas de visão, no pâncreas, nos rins... Mas fiz tratamento de desintoxicação por muito tempo, em São Paulo, nos EUA. Depois, fiz uns exames na Fundação Evandro Chagas e o nível de contaminação estava abaixo do que prescreve a Organização Mundial da Saúde.
A senhora considera que teve uma infância dura?
Era dura, mas a gente funciona pela dualidade. Não tinha contato com pessoas ricas, só com pessoas semelhantes à gente. Então, ficava difícil reclamar se a vida de quem estava ao lado era parecida com a sua. Sabia que era dura no sentido de trabalhar no roçado, de cortar seringa. Mas eu e minhas irmãs trabalhávamos brincando. Não era um trabalho forçado, era um trabalho necessário, que fazia parte da ajuda à família, da aprendizagem... Tinha muita diversão. Correr e brincar no igarapé, escutar o teatrinho infantil às seis horas da tarde no rádio... Eu ficava fascinada pelas radionovelas da [rádio] Rio Mar, da Ivani Ribeiro.
O que aprendeu com as radionovelas?
Aprendi a falar. Ia vendo que aquela língua da novela era diferente da nossa. Eles falavam “colher”, a gente falava “cuié”. Comecei a achar que nós estávamos errados e a falar como nas novelas. Minha mãe brigava comigo: “Marina é metida, tá falando língua de gente besta da cidade” [risos].
Fonte: Revista TPM
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